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A dívida escondida ilegítima de Moçambique

Realizada à pedido da Procuradoria Geral de Moçambique, a auditoria sobre a dívida escondida de Moçambique (2 bilhões de dolares) começa à ser difundida desde fins de junho de 2017, com alguns meses de atraso. Só as conclusões estão, por enquanto, disponíveis. Elas são claríssimas : além dos limítes levantados pelo gabinete estado-unidense Kroll : grande parte destes empréstimos são ilegítimos.

Esta auditoria foi exigida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para regressar ao apoio orçamental acordado ás autoridades moçambicanas, interrompido em avril de 2016, quando foi descoberta esta dívida “escondida”.

Por Claude Quémar

Tlaxcala - 8 de Setembro, 2017 | Traduzido por Pedro da Nóbrega

http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=21466

Resumo dos episódios precedentes

Em agosto de 2013 foi criada a empresa Ematum (Empresa Moçambicana de Atum) por iniciativa dos serviços da segurança do Estado. Um mês depois, esta sociedade encomendou ás Constructions Mécaniques de Normandie (CMN), filial da Privinvest, 30 barcos, 24 barcos para a pesca do atum e 6 patrulheiros, para um contrato avaliado em 200 milhões de euros.

Para financiar esta encomenda, a Ematum empresta, sob a forma de euro-obrigações, 500 milhões de dolares ao Crédit Suisse e 350 milhões de dolares ao segundo banco russo VTB (banco público), com a garantia do governo moçambicano, então liderado por Armando Guebuza. O total destes emprèstimos representa cerca de 6 % do PIB do país.

Dia 5 de setembro 2013, três Ministros franceses, nomeadamente Arnaud Montebourg, então Ministro do ’Redressement Productif’ (Recuperação produtiva), marcam presença em Cherbourg para a assinatura do contrato, apresentado como « uma salvação para o estaleiro de Cherbourg, á espera de encomendas e que ia impôr mais medidas de desemprego parcial ». Em novembro, as CMN anunciam que vão sub-empreitar a construcção de 16 dos 30 barcos na Romênia. "O preço de custo é metade menos alto que em França (...) O uso desta sub-empreitada na Rômenia permitiu-nos propôrmos um preço global competitivo e assegurar desta forma o trabalho dos nossos 350 trabalhadores" (sic), declara o PDG das CMN, Pierre Balmer. Foi o que Montebourg chamou "o triunfo do made in Cherbourg ou seja do made in France".


François Hollande e o seu homólogo moçambicano Armando Guebuza lançaram oficialmente os trabalhos de construção naval dia 30 de setembro 2013 nas CMN em Cherbourg, em presencia do seu principal acionista Iskander Safa (à direita de Guebuza). Foto Jean Lavalley / Le Marin

Ninguém estranha o financeamento (um empréstimo de 850 milhões de dolares para uma factura de 200 milhões de euros), ninguém aponta para o facto de as CMN serem especializadas na construcção de barcos militares e não nos barcos de pesca.

Este empréstimo, realizado por intermédio da Privinvest, empresa sediada nos Emirados Árabes Unidos, e dirigida pelo homem de negócios franco-libanês Iskandar Safa, é sorteada em várias partes, colocadas com éxito em grandes obrigacionistas, cativados pelos 8,5 % de rendimento. Entre 2013 e 2014 são no total cinco empréstimos, para uma valia global de 2 bilhões de dolares, que vão ser subscritos nestes mesmos bancos, por três companhias, Ematum (850 milhões de dolares), Mozambique Asset Management por 535 milhões de dolares e Proindicus (622 milhões de dolares), as três criadas sob a alçada da segurança do Estado, sem nenhuma experiênca neste gênero de práticas. Estas compras diziam respeito á elementos de defesa costeira : radares, drones… Privinvest afirma que não há armamentos envolvidos.

Reestruturação

O governo moçambicano foi obrigado á reinserir no seu orçamento a parte militar do empréstimo Ematum (350 milhões de dolares), criando assim um primeiro atrito com os credores do país (FMI em particular). Para estes, se o país procede á despesas militares de importância, já não é preciso lhe fornecer uma ajuda desencadeada no quadro da iniciativa PPTE (Pays Pauvres Très Endettés- Países Pobres Muito Endividados) para a qual Moçambique foi um dos primeiros países á chegar ao ponto de acabamento. O país beneficiou desta forma de um alívio da dívida pública. A França, único país europeo vizinho de Moçambique, via Mayotte, estava muito interessado nas enormes riquezas de gás e petróleo do país, incluíndo as necessidades de equipamentos para as protecções das costas que decorrem desta situação. Não é por acaso que Moçambique foi o primeiro país á assinar um Contrat Désendettement-Développement (C2D) – Contrato Desendivídamento Desenvolvimento – com a França |1|. Desde aí, os investimentos franceses estão em forte aumento. Uma empresa francesa (Tereos) divide com empresas sul-africanas o contrôle do sector do açúcar, segundo jazígo de empregos depois do sector público.

Em 2016, as autoridades moçambicanas tiveram que reestruturar a dívida da Ematum para poderem assegurar os pagamentos. 85 % dos credores aceitaram uma troca de títulos muito interessante para eles, os antigos títulos sendo substituídos por obrigações do Estado com prazo de 10 anos, com um rendimento de 14,4 %. Àpenas algumas horas depois deste acordo, aprendem a existência dos empréstimos escondidos da Proindicus e da MAM. Depois, no mercado secundário, estes títulos revendem-se á volta de 75 % do seu valor facial, ou seja uma taxa de juros real de 19 %. Com 10 anos de vida, estes títulos serão liquidados em 2026, ou seja quando o país vai receber o benefício dos enormes investimentos realizados no sector do gás. Em 2010, foram descobertos 5 000 bilhões de metros cúbicos ao largo das costas do país, apelidado desde então no ramo como o « pequeno Qatar”. As vicissitudes da dívida soberana não esfriaram os impetos dos investidores no sector, todas as transnacionais do ramo marcam presença (Total incluído). O primeiro acordo assinado implica mais de 7 bilhões de euros, ou seja mais de metade do orçamento do país. E os benefícios para o país estão avaliados á prazo em dezenas de bilhões, o que levou ao anúncio, pelas autoridades moçambicanas, da criação de um fundo soberano dotado de um capital de partida de 350 milhões de dolares.

Quais são as conclusões da auditoria Kroll ?

Sem ter acesso ao conjunto dos elementos, não fornecidos pelas sociedades incriminadas, Kroll aponta dois problemas maiores : uma sobrefacturação gritante e a ausência de justificativos para os montantes emprestados. É assim por exemplo que os barcos de pesca fornecidos pelas CMN, facturados 20 milhões de euros cada, estão avaliados em 1,8 milhão de euros. Entregues mas não usados, fazem ferrugem no porto de Maputo, por falta de marinheiros formados. Um périto independente, mandatado pela Kroll, avalia em 713 milhões de dolares a diferença entre o valor real do material entregue e o montante orçamentado. Acrescentando o valor dos equipamentos entregues, ajuizados pela Kroll em 505 milhões de dolares, maís 200 milhões de comissões… só falta 1,3 bilhão de dolares para justificar o montante do dinheiro emprestado ! Onde passou esta quantia ? Provávelmente dividida entre fornecimentos de armas e o que o relatório chama de « pequeno grupo » dos serviços da segurança do Estado, cujos nomes são calados na auditoria (mesmo se alguns nomes não deixam de circular nos serviços de segurança).

Os auditores viraram suas buscas para as contas do antigo Presidente da República, Armando Guebuza. Mas o actual Presidente, Felipe Nyusi, era antes Ministro da Defesa ou seja, uma das tutelas da Ematum. O relatório aponta igualmente para o valor das comissões ganhas pelos bancos e pelo fornecedor, ou seja um total de 200 milhões de dolares (10 % do total emprestado). Aquando da reestruturação do crédito da Ematum, em 2016, foram de novo desembolsados 4,1 milhões de dolares como comissão para o Crédit Suisse.

Bancos pouco atentos

Os bancos implicados neste negócio não são vítimas, são cúmplices. Segundo os procedimentos em vigor neste banco, o Crédit Suisse deve obter luz verde do Banco de Moçambique e do Tribunal Administrativo. Além disso, o banco deve informar o FMI antes de assinar o contrato. Nada de isso ocorreu no entanto… o empréstimo foi concedido. As comissões recebidas tornaram pelos vistos o banco pouco atento á legalidade.

Quanto ao FMI, se suspendeu a ajuda ao país, satisfez-se, aquando da sua visita em julho de 2017, de exigir a publicação na íntegra do relatório Kroll.

Uma dívida ilegítima

Para Joseph Hanlon, da Open University, « esta sucessão de fracassos é tão grotesca que devia ter tornado evidente para o Crédit Suisse, VTB e outros credores que este projecto não era viável ». Para ele, esta dívida é claramente ilegítima. Os credores, tem de facto uma obrigação de vigilância, o que significa recusar empréstimos que não sejam justificados por razões públicas quando se trata de instituições estatais. A garantia fornecida pelas autoridades de então é ilegal. A Constituição moçambicana diz claramente que só o parlamento pode decidir desta garantia. Por outro lado, os montantes garantidos ultrapassavam largamente os tectos autorizados pelas Leis de finanças de 2013 e 2014. Além disso, a pessoa designada para dar um parecer sobre a garantia governamental dos empréstimos da Proindicus e da MAM trabalhava um mês antes como director não executivo… da Ematum, com um vencimento mensal de 5 000 dolares de agosto 2013 até julho 2014.

O Financial Times, no seu editorial do 2 de julho, vai no mesmo sentido caracterizando estas dívidas escondidas de odiosas.

O Parlamento validou estes empréstimos, a posteriori, no decorrer de 2017. Esta decisão faz correr o risco de tornar ainda mais árduo a renegociação destas dívidas, ilegais e ilegítimas.

Desde aí, Moçambique vê-se mergulhado numa crise financeira sem precedentes. A dívida pública atinge agora 120 % do PIB. Incapaz de honrar o prazo dos reembolsos, o país encontra-se em situação de incumprimento financeiro, para 60 milhões de dolares, desde janeiro de 2017. O Governador do Banco Central já anunciou que as dívidas bilaterais e multilaterais serão honradas, mas que os credores de dívidas escondidas teriam que aceitar uma reestruturação.

Se é do mesmo tipo que a solução proposta aos credores da Ematum, penhorando os futuros recursos do gás, ela terá lugar contra os interesses da população que se vê excluída destes benefícios. O salário mínimo não-agrícola situa-se á volta de 60 dolares por mês. É ela no entanto que vai ter de assumir o pagamento desta dívida ilegítima, mesmo reestruturada. As responsabilidades dos credores são tais, os silêncios cúmplices dos países credores e também do FMI tão evidentes, que a única solução, legítima esta, é o repúdio desta dívida.

Nota:

|1| Os C2D são o método usado pela França para gerir as reduções de dívidas bilaterais, em particular para favorecer as empresas francesas.

Claude Quémar Claude é membro do CADTM França (Comitê para a Abolição de Dívidas Ilegítimas)

http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=21466


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